sábado, 13 de julho de 2013

Vir dormindo pela estrada e a estrada

Fui caminhando ressabiado pelas ruas da cidade, tudo estava tão mudado. Havia mais prédios e asfalto onde antes reinava um certo assentamento natural das coisas: as pessoas viviam no chão, não empoleiradas em segundos, terceiros, décimos andares e a água da chuva se entranhava de volta na terra; agora não e eu fiquei meio assim. As ruas tinham os mesmos nomes e a princípio eu não pude concordar com aquilo. Tudo mudara tanto que a rua não era a mesma e aquele nome não era só antiquado, parecia mentiroso. “Emanoel Pinto? Não, deve haver algum engano. Cadê o mercadinho, a escola de datilografia, a casa do seu Humberto?”. Tive que desconstruir rotas: quando quis um sorvete eu tive que dar com um prédio comercial e perguntar se alguém sabia de alguma sorveteria. Só no shopping, disseram. Que shopping?
Aqueles que eu encontrava eram velhos fantasmas, rostos refeitos, transformados pelo tempo. A um só tempo despertavam e desfaziam a minha memória, impunham-se estranhamente à minha passagem com cabelos brancos e rugas antes inexistentes; aos meus breves olhares mudavam pra sempre a imagem que deles eu vinha conservando com o passar dos anos e eu tinha impressão de que eu mudava junto – em mim também surgiam súbitos e desconcertantes vincos no rosto. Eu achava que os encontraria  corpos de borracha aos quais minha visita fosse um pequeno sopro do mundo dos vivos e que à minha partida cairiam inanimados no chão, intactos e imperecíveis como eram na minha infância. Eu achei, achei que eles tivessem esperado, mas eles continuaram existindo.
Em algum momento do dia cheguei à antiga casa dos meus avós: estava lá, no lugar de sempre; abandonada, envelhecida, em escombros, mas ainda bonita por causa da saudade. Pensei em entrar e fiquei com medo de alguém ver e chamar a polícia. Hesitei, olhei muito ao redor, quase decidi esperar anoitecer pra poder entrar sem que ninguém me visse, mas lembrei do que minha vó dizia quando meu vô me admoestava – Deixa o menino, nego – e deixei o menino entrar. Verdade verdadeira não entrou só o menino, entraram os outros que eu fui também; mil olhos olhavam, mil pernas cruzavam a soleira. A princípio entrei meio acanhado, andando com cuidado, mas depois fui ficando corajoso.
Andei de aposento em aposento e os pedaços de madeira podre, o pó, as folhas que entraram pelo teto meio quebrado com o passar dos anos, tudo eu ia limpando mentalmente. O espaço vazia eu decorava da maneira como lembrava – a cama aqui, o bidê, o sofá, a pia azul clarinho. Lembrava sem trégua, uma memória atrás da outra. Às vezes, na ânsia, umas duas ou três de uma vez – era o meu passado invadindo meu presente num vagalhão.
Aí eu já corria de aposento em aposento e não sabia se desviava de primos há muito esquecidos e delicados abajures ou de teias de aranha e buracos no chão. Ofegava, arquejava e não sabia se era por ser pequeno ou velho demais para o esforço. Chamava nomes que não sabia se responderiam ou se já não eram mais que nomes de ninguém.
De repente achei um brinquinho de ouro, um só, brilhando no meio da bagunça. Quem sabe a única coisa que ainda brilhava sem a necessidade da intervenção do meu saudosismo. Fiquei feliz. Peguei na mão, olhei com carinho. Depois pus de volta onde estava, saí da casa e vim pra cá onde estou agora.

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